quinta-feira, março 25, 2004

CLIC

Não são raras as vezes que as pessoas utilizam este termo, não para reproduzir verbalmente um estalido de determinado objecto (como quando se liga um interruptor), mas antes referindo-se ao fenómeno que se desenvolve, sob a forma de combustão espontânea, quando se sentem particularmente atraídas por alguém. Este clic vale o que vale, embora assuma valorizações diferentes em função dos contextos e da personalidade de cada um.
Dizia-me um amigo que “quando não há o clic, apesar de haver atracção, mais vale não investir, porque acaba por não resultar em nada”. Na verdade, são muitos os que sustêm a ideia de que, sem esse clic, o desenvolvimento de algo mais profundo está rotunda e automaticamente condenado ao fracasso, como se fosse uma condição sine qua non
A minha visão diverge, em grande escala, desta crença, uma vez que pode redundar num minimalismo que, per se, constitui um inibidor, à priori, da transposição da superficialidade. Na história dos relacionamentos, as relações pré-concebidas de causa-efeito são altamente falíveis, o que sugere que esta crença parece não ter validade nem utilidade.
Reconhecendo que o clic funciona como uma predisposição inicial para o avanço, acredito, não obstante, que este não tem de ser, obrigatoriamente, espontâneo e imediato, sendo passível de uma depuração gradual resultante de combinações multifactoriadas. Além disso, nem sempre este fenómeno consegue operar-se na esfera do consciente, pelo que o clic pode ter ocorrido num precedente não considerado e apenas se vir a deduzir a sua manifestação muito mais tarde.
Nessa linha de pensamento, fará sentido pautar os nossos investimentos pela ausência/presença de clics imediatos? Estar-se-á, eventualmente, a coartar a hipótese de vislumbrar esse clic à posteriori… E tenho reparado que, ao reger-se por esta ideologia, a pessoa torna-se cada vez mais exigente na busca desse clic, reduzindo ainda mais a possibilidade de o encontrar.
A naturalidade e espontaneidade das coisas não deve ser congeminada, pois que se aniquilam de imediato. E torna, assim, a vivência emocional muito mais limitada…

Duende

terça-feira, março 16, 2004

Hoje faço anos. Nada de novo. Quarto de século. Três brancas novas. Boa auto-estima.
E o Lost in Translation é do melhor que já vi...

Duende

domingo, março 14, 2004

A PRIMEIRA VEZ

Sempre pensei que andar de avião tinha imensa piada… até ao dia em que me meti num pela primeira vez.
“Medo? Medo? Qual medo? Deve ser espectacular andar de avião!” – era o que eu ripostava quando alguém me falava nesse assunto. O dia D aproximava-se, eu sonhava em ver as nuvens ao nível do meu nariz e fitar a terra lá de cima, com prepotência q.b.. “Medo, qual medo? Vou a adorar!!!”. A ansiedade era corrosiva, tal como a excitação. Entrei naquele bicho enorme e observava cada pormenor com uma atenção gulosa e indiscreta, o friozinho no estômago tinha chegado para ficar, mas o entusiasmo era supremo.
Sentei-me e segui todas as instruções. Apertei o cinto, acomodei-me no assento e preparei-me para a descolagem. Sentia a adrenalina a invadir-me o corpo e nunca mais me esqueço quando o avião arrancou e desbravou a imensidão do firmamento. Quando finalmente estabilizou, começou a rotina das hospedeiras e eu continuei colada à janela. A trepidação começou a dar o ar da sua graça e em breve o meu entusiasmo começou a empalidecer. Apercebi-me que estava que estava no ar, a muitos pés acima do chão firme e esperei que o pânico tomasse conta de mim. Queria sair dali!!! “ E se esta bodega cai???” Tinha a cabeça a mil, os sentidos em alerta máxima e qualquer alteração de ruídos era uma bomba a detonar dentro de mim…!
A minha aflição devia ser visível. Sentia a pele gelada e a respiração difícil. Ao meu lado, um homem tranquilo e relaxado, na ternura dos quarenta, com estilo de um executivo que viaja todas as semanas como osso de ofício. Fitava-o incessantemente, procurando na sua aparência despreocupada a calma que eu não tinha, que me fizesse sossegar um pouco e sentir que estava tudo bem. Com um sorriso nos lábios, interpelou-me com serenidade: “Es tu primer viaje en avión…?”. Tentei responder mas a voz prendia-se e não conseguia articular um único som. Acenei com a cabeça e ele voltou a sorrir: “No te agovies, no pasa nada!”. E começou a divagar sobre as suas viagens sucessivas, as rotinas e as peripécias de quem voa tantas vezes. “Tranquilizate, el avión es un transporte muy seguro!”. E, aos poucos, comecei a desanuviar, acoplada a cada palavra que lhe escorregava, com o dom de quem faz da calma uma divisa de eleição. O tempo parecia parar e dei por mim a sobrevoar Madrid, cinzenta e agridoce. O alívio da aterragem que se adivinhava permitiu-me uma inspiração profunda e a sua voz doce irrompeu, com a placidez que o caracterizava, “Mucha suerte y no te preocupes…”.
Dirigi-me à zona dos terminais em passo lento e compassado. Os pensamentos assaltavam-me ininterruptamente “Porque raio não há voos directos para o Porto?”. O meu pesadelo ainda se prolongava por mais 45 minutos de metragem…
Ainda não perdi o medo… e, na verdade, acho que jamais me livrarei dele…

Duende