sexta-feira, novembro 14, 2003

MORBO


Existe, no vocabulário espanhol, um conceito que, à semelhança de “gilipollas”, lamento profundamente não poder utilizá-lo no meu quotidiano – MORBO. No país vizinho, esta palavra assume significâncias multifacetadas, permitindo descrever com propriedade determinadas sensações que experienciamos frequentemente. Não posso ser presunçosa a ponto de afirmar veementemente que não exista alguma correspondência directa no vocabulário lusitano, pois não sou omnisciente. Mas desconheço por completo que exista.

Numa aproximação pobre e incompleta a esta designação, poderei sugerir alguns termos: “curiosidade”, “pica”, “excitação”… Embora ciente do seu significado e critérios de aplicação comuns na comunicação verbal, sinto dificuldade em expor, de forma clara e fiel, o que esta palavra representa. Assim sendo, torna-se mais fácil se apresentar exemplos.

Existe um fenómeno que todo o ser humano (mais ou menos sensível) experiencia, variadas vezes ao longo da vida, e que se traduz pela tendência natural em dar atenção, demonstrar interesse, por acontecimentos trágicos, manifestações aberrantes, casos insólitos, enfim, toda e qualquer ocorrência que, extravasando da “normalidade” própria da sua realidade social e cultural, está associada a sensações negativas (é por certo, deste fenómeno tão peculiar, de que se alimenta todo e qualquer órgão de comunicação social sensacionalista).

Assim, perante a divulgação de uma catástrofe que envolva, por exemplo, mortes sangrentas, ninguém resiste a assistir a reportagens absolutamente chocantes. Existem, inclusivamente, estudos sociológicos em vários países que comprovam este facto, revelando dados surpreendentes nesta matéria; sugerem até que a curiosidade/interesse das pessoas é directamente proporcional à gravidade dos acontecimentos (não é de admirar, portanto, que tantas manchetes de jornais e reportagens televisivas adiantem, frequentemente, estatísticas dilatadas em relação aos números reais). Estas situações chocantes, causam, então, um intenso “morbo”, induzindo-nos quase irremediavelmente a ver e a querer saber cada vez mais acerca de algo que lamentavelmente aconteceu e que ninguém gostaria que tivesse acontecido. Recordo-me do maldito 11 de Setembro, e de assistir, perplexa, vezes sem conta, às imagens debitadas 24 horas por dia em todas as estações televisivas nacionais e internacionais. Era um espectáculo hediondo, chocante, bárbaro que, no entanto, eu não conseguia deixar de ver, era mais forte do que eu, esse “morbo” incontrolável.

Podemos também sentir “morbo” em relação a alguém. Seria insuficiente apelidar esse efeito como atracção, desejo ou interesse; na verdade, “morbo” será isso e muito mais. Dizemos que determinada pessoa nos causa “morbo” quando produz em nós uma curiosidade intensa, uma atracção invulgar… recordo-me de ouvir frequentemente , em Espanha, frases do género: aquele miúdo não é giro, não tem anda de especial, é perfeitamente vulgar, mas dá-me um “morbo” impressionante, há qualquer coisa nele que me dá “morbo”…

Na verdade, considero este termo muito especial. Não passa de uma palavra, mas além da sua sonoridade, confere maior facilidade à expressão, na medida em que nos poupa a frases extensas e, provavelmente incompletas, para explicar sensações como atracção, interesse, curiosidade ou desejo. Tal como gilipollas. E isso dá-me morbo, muito mesmo…


Duende


(Nota: tive a oportunidade acidental de descobrir que, no vocabulário português, a palavra “morbo” está associada a doença, enfermidade. Embora o sentido que tenha sugerido aqui seja mais lato, acredito que haja alguma raiz etimológica comum, uma derivação semântica, tendo em conta as situações a que aparece associado.)